quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Janela da alma: um filme sobre o olhar.

O desejo de fazer um documentário sobre o "olhar" através das deficiências visuais inspirou os míopes João Jardim e Water Carvalho a produzirem o encantador filme Janela da Alma.


Walter relatou que, ao pensar no roteiro, a pergunta inicial era: que tipo de personalidade os entrevistados – escritores, cineastas, fotógrafos – tinham formado na vida, a partir dessa “cegueira”, dessa necessidade de enxergar com óculos? Mobilizado por esta curiosidade inicial, optou por fazer um ensaio sobre a capacidade de enxergar o mundo de maneira enriquecedora, apesar de uma afecção tida geralmente como obstáculo, como a miopia ou a retinose pigmentar.

O filme procura mostrar de qual forma a deficiência visual tem sido vivida como eficiência por muitos artistas que precisam do “olhar” para criar.
As pessoas não sabem mais ver, pois não têm mais o olhar interior. Vive-se um tipo de cegueira generalizada (Depoimento do fotógrafo Evgen Bavcar; cego).
São depoimentos reflexivos de algumas figuras emblemáticas da cultura artística: Saramago, Manoel de Barros, João Ubaldo, Win Wenders, Evgen Bavcar, Walter Lima Jr, Marieta Severo, Antonio Cícero, Paulo César Lopes, Arnaldo Godoy, Marjut Rimminen, Hermeto Paschoal e, também, Oliver Sacks (neurologista britânico conhecido na área médica por ter escrito livros em que conta interessantes casos clínicos romanceados).
Os olhos são a janela da alma, o que vemos é mudado pelas nossas emoções... desespero, conhecimento, eu não posso ver, mas posso ver, vejo com os olhos da mente.(Oliver Sacks)
Revelações fantásticas destes portadores de doença ocular chamam a nossa atenção para as particularidades do viver, fazendo-nos um convite a enxergar o que não vemos.
“E se fossemos todos cegos? Cegos da razão, cegos da sensibilidade, cegos de tudo aquilo que faz de nós não um ser funcional no sentido da relação humana, mas ao contrário, um ser agressivo, egoísta, um ser violento. E o espetáculo que o mundo nos oferece é justamente esse, um mundo de desigualdade, de sofrimento, um mundo sem justificação. Podemos até explicar o que se passa, mas não tem justificação.” (Depoimento do escritor José Saramago).

Se expandir-se é enfrentar o próprio limite, o que de fato amplia a visão é também o que a impede, é a necessidade de ver além que nos faz buscar sentido no invisível.


REFERÊNCIA:
RIBAS, MC; "Depoimentos à meia luz: a Janela da Alma ou um breve tratado sobre a miopia". ALCEU - v.3 - n.6 - p. 65 a 78 - jan./jul. 2003.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

O parto cesariana na mitologia

A primeira cesariana relatada na história tem como protagonista a ninfa Coronis. Deste parto nasceu o deus da Medicina, Asclépio (para os gregos) ou Esculápio (para os romanos), filho de Apolo.

Gravura medieval: O nascimento de Esculápio.
Coronis estava prometida ao seu primo Ísquis, mas, por conta de uma desmedida paixão, engravidou de Apolo.Um corvo conta a Ísquis sobre a traição de Coronis . Solidária com o sofrimento de seu irmão Ísquis, a deusa Artemis condena Coronis à morte pelo fogo. Apolo, vendo Coronis na pira fatal, retira o filho do ventre materno.

Assim, o deus da Medicina seria o fruto da primeira cesariana realizada no mundo. Ele foi criado pelo centauro Quiron (metade cavalo, metade homem) que lhe ensinou a arte de curar. Temendo que Esculápio, por sua inteligência e habilidade médica, tornasse todos os homens imortais, Zeus (Júpiter) fulminou-o com um raio.

O imperador Júlio César promulgou uma lei determinando que, diante da possibilidade do óbito da mãe e do concepto durante o trabalho de parto, o médico ficasse de sobreaviso e, assim que ocorresse a morte materna, estaria autorizado a abrir o ventre e salvar a criança. Por causa dessa determinação do imperador, espalhou-se erroneamente pelo mundo a idéia de que a operação cesariana tenha recebido este nome porque o imperador nascera deste tipo de parto.

REFERÊNCIAS:
1.O Livro de Ouro da Mitologia – Thomas Bulfinch
2. BEZERRA, Armando "Admirável mundo médico: a arte na história da medicina" - Brasília, 2002

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Descrição de Acidente Vascular Encefálico na Bíblia Sagrada

Em 1861, Paul Broca exibiu à sociedade científica o caso de uma paciente que apresentou afasia motora e hemiplegia direita após lesão no giro frontal inferior esquerdo. Esta descrição é considerada um marco na história da neurologia, entretanto, há evidências de que há mais de dois mil anos esses sinais já haviam sido descritos no Livro Sagrado.

Se eu me esquecer de ti, Oh Jerusalém, que a minha mão direita se paralise; 6 - Que minha língua se me apegue ao paladar, se eu não me lembrar de ti, se não puser Jerusalém acima de todas as minhas alegrias...(Salmos 137:5)

Provavelmente, a primeira descrição de Acidente Vascular Encefálico (AVE) foi registrada no capítulo 137 do livro bíblico de Salmos. O significado deste Salmo seria uma invocação a um castigo correspondente a um AVE da artéria cerebral média esquerda.

A paralisia da mão direita associada à imobilidade da língua descreve a forma sintomatológica clássica de AVE com hemiplegia direita e afasia motora.

REFERÊNCIAS:
1.Resende LA, Weber SA, Bertotti MF, Agapejev S. Stroke in Ancient Times: A Reinterpretation of Psalms 137:5,6. Arq Neurosiquiatr. 2008;66:581–3.
2.Tubbs RS, Loukas M, Shoja MM, Cohen-Galdol AA, Wllons III JC, Oakes WJ. Roots of Neuroanatomy, Neurology, and Neurosurgery as found in the Bible and Talmud. Neurosurgery. 2008;63:156–63.

domingo, 6 de novembro de 2011

A Cegueira de Claude Monet

Quando um cantor perde a voz, ele se aposenta. Também o pintor que não enxerga deve abandonar a pintura, mas isso eu sou incapaz de fazer. Claude Monet.
Impressão: Nascer do Sol (1872). Claude Monet. Óleo sobre tela, 48x63cm. Marmottan Monet (Paris).
Em 1873, o impressionante artista Oscar-Claude Monet (1840-1926), com a impressionável pintura Impressão, Nascer do Sol, gestou o termo impressionismo para um movimento artístico inteiramente novo .

A técnica de Monet, - considerada mais tarde como umas das belas do mundo - mostrava-se bastante peculiar. Caracterizada pela representação da luz e movimento utilizando pinceladas soltas, as imagens formadas nas telas aparentam ser de perto apenas borrões, mas, ao distanciar a visão, o examinador passa a enxergar as formas nitidamente.

Monet não imaginava que, por conta de uma doença ocular, a “impressão” do estilo que fundou se projetaria fielmente em sua vida. Com a progressão da doença, ele passaria a ver o mundo turvado e delineado por manchas coloridas, tal como o representava em suas telas. Também ele, assim como os observadores de suas obras, precisaria alcançar de longe a limpidez que não mais estaria diante de seus olhos. O pintor conseguiria, mais tarde, se distanciar e encontrar tal nitidez — com a ajuda da memória — no fundo de sua alma.

Diante das belas paisagens venezianas, em 1908,Monet começou a notar que já não enxergava perfeitamente. Em 1912, aos 72 anos, ele procurou especialistas relatando uma enorme quantidade de problemas com sua visão. Queixava-se predominantemente de turvação visual e dificuldade na percepção de cores. Constatada uma acuidade visual de 20/200 no melhor olho, deram-lhe o diagnóstico de catarata nuclear bilateral.

A catarata adquirida é considerada a causa mais comum de cegueira (perda visual completa) no Mundo. O tipo “nuclear” é o mais associado à perda da diferenciação de cores nas fases iniciais. À medida que o cristalino vai se opacificando, a visão vai ficando lenta e progressivamente borrada, surge também uma perda da definição das letras e objetos. Com o tempo, o aumento da opalescência do cristalino vai agravando o borramento visual e então o paciente passa a ter dificuldade na visão para perto e longe. Além da alteração da visão de cores, as imagens costumam ficar “nubladas e enevoadas”.

A doença pode ter acometido Monet por conta das muitas horas em que ficou com seus olhos expostos ao sol. Sabe-se que a radiação ultravioleta é um clássico fator de risco para catarata, perdendo em importância apenas para a idade avançada. Monet pintava ao ar livre, preferencialmente ao meio dia, visto ser a representação do efeito que a luz solar produz sobre a natureza uma importante característica do impressionismo.

Como tratamento, foi-lhe recomendado cirurgia para o pior olho, mas, embora a operação fosse relativamente segura nesta época, Monet resistiu por medo de perder totalmente o pouco que lhe restava da visão (fato que ocorreu com um amigo que fora submetido a mesma cirurgia).

Durante o período em que sofreu com a doença, ele produziu alguns de seus trabalhos mais marcantes e característicos. Sua visão tornou-se progressivamente mais acastanhada em sua essência; o artista enxergava através de uma opacidade densa amarelo-marrom.

Não percebo mais as cores com a mesma intensidade nem pinto a luz com a mesma precisão. O vermelho aparece lamacento para mim; já o rosa, insípido; e os tons intermediários ou menores me escapam por completo. O que eu pinto está cada vez mais escuro, mais e mais como uma fotografia antiga.

A catarata limitava severamente sua discriminação de cores e, como forma de “sobrecompensação”, Monet passou a pintar com tonalidades mais intensas.

Water Lilies (1916). Claude Monet.
Pinturas de nenúfares e salgueiros, ao longo do período 1916-1922, exemplificam a mudança. Os tons se tornaram mais enlameados e escuros, as formas surgem bem menos distintas, sua sensibilidade de contraste está diminuída, as pinceladas são mais fortes e as cores mais intensas.

À esquerda: pintura de Monet da ponte japonesa em seu jardim em Giverny (1899); A mesma cena (meio) que ele tentou capturar novamente entre 1918-1922 mostra que as cataratas turvaram sua visão e que o amarelamento das lentes de seus olhos prejudicaram sua visão do azul e do verde, deixando-o num mundo mais "vermelho e marron". À direita: Imagem computadorizada criada por especialistas mostrando como Monet enxergaria em 1924.

Em 1920 a visão de Monet se deteriorou gravemente, ele já não era capaz de distinguir os tons e, com o intuito de continuar as produções isento de cometer erros, providenciou uma paleta em que mantinha uma ordem regular de cores. Mais adiante, o artista tornou-se capaz de enxergar apenas vultos, a partir de então, passou a pintar imagens que guardava na memória.

Frustrado com a perda da visão, em 1922 ele escreveu a Marc Elder: Para criar uma aura impressionista, confio apenas nos rótulos dos tubos de tinta e na força do hábito dos meus 50 anos de trabalho.

Mais tarde, em uma entrevista, ele disse: No fim, terei que admitir que estou arruinando minha arte, parece que já não sou capaz de produzir algo belo. Já destruí várias das minhas telas. Hoje estou praticamente cego e deveria renunciar a pintura completamente.

Em janeiro de 1923, o Dr. George Clemenceau convenceu Monet a se submeter à cirurgia. A operação foi realizada em dois estágios: uma iridectomia preliminar seguida por uma extração extracapsular da catarata.

Pós-recuperação, Monet tinha grande dificuldade para se adaptar. Ele não conseguia enxergar com ambos os olhos ao mesmo tempo e se queixou de que os objetos adquiriram uma curvatura anormal.

Sinto que se eu der um passo, vou cair no chão. Perto ou longe, tudo é deformado e dúbio. Enxergar dessa maneira é intolerável. Persistir parece perigoso para mim. Se eu estava condenado a ver a natureza como a vejo agora, preferiria continuar cego e manter as memórias das belezas que sempre enxerguei.

Monet também se queixava da marcante diferença entre a percepção de cores entre os olhos, dizendo que tudo que via com seu olho afácico adquirira uma tonalidade azul. Mais tarde, óculos com uma tonalidade verde-amarelo lhe foram prescritos, o que o levou para fora de seu desespero. Monet pintou até a sua morte, em dezembro de 1926, por doença pulmonar obstrutiva crônica e câncer de pulmão.

A concepção global de que pintores produzem suas obras traduzindo “aquilo o que enxergam” suscitou a compreensão geral de que os olhos de Monet eram não somente a janela de sua alma, mas também a porta para seu universo artístico. Presume-se que qualquer mudança significativa na visão do pintor afetaria sua interpretação e tradução artesanal do mundo. A catarata seria prejudicial aos detalhes fundamentais de seu estilo, tais como a sensibilidade requintada à luz, às cores e aos detalhes morfológicos. Podemos nos perguntar então a que se atribui a grandeza de Monet?

A excelência artística de Monet tem raiz por detrás do cristalino, na organização espetacular da sua "lente cerebral". Enquanto enfrentava um grave declínio da função ocular, o gênio escalou alturas da visão artística. A quase total cegueira de Monet, aliada aos seus esforços incansáveis para vencer a deficiência, provocou ao fim um efeito positivo sobre o seu trabalho.

A luta apaixonada de Monet por sua arte faz-me lembrar as encantadoras palavras de Victor Hugo em sua magnânima obra Os Trabalhadores do Mar:
...O consentimento da alma recusado ao desfalecimento do corpo é uma força imensa.[...] Os teimosos são os sublimes. Quem é apenas bravo tem um assomo, quem é apenas valente tem só um temperamento, quem é apenas corajoso tem só uma virtude; o obstinado na verdade tem a grandeza. Quase todo o segredo dos grandes corações está nesta palavra: - Perseverando. A perseverança está para a coragem como a roda para a alavanca; é a renovação perpétua do ponto de apoio. Esteja na terra ou no céu o alvo da vontade, a questão é ir a esse alvo. [...] Não deixar discutir a consciência, nem desarmar a vontade, é assim que se obtém o sofrimento e o triunfo. Na ordem dos fatos morais o cair não exclui o pairar. Da queda sai a ascensão. Os medíocres deixam-se perder pelo obstáculo especioso; não assim os fortes. Perecer é o talvez dos fortes, conquistar é a certeza deles. [...] A perda das forças não esgota a vontade, crer é apenas a segunda potência; a primeira é querer; as montanhas proverbiais que a fé transporta nada valem ao lado do que a vontade produz.(Victor Hugo, 1866).

REFERÊNCIAS:
1.MARMOR, MF. “Ophthalmology and Art: Simulation of Monet’sCataracts and Degas’ Retinal Disease.” ARCH OPHTHALMOL/VOL 124, DEC 2006.
2.Lanthony P. Cataract and the painting of Claude Monet. Points de Vue. 1993;29:12-25.
3.Ravin JG. Monet’s cataracts. JAMA. 1985;254:394.399.
4.Projeto Diretrizes “Catarata: Diagnóstico e Tratamento”. Associação Médica Brasileira e Conselho Federal de Medicina